Tudo
escuro e fluido. Tudo saciado dentro da caverna-planeta... Tudo
necessidades e beleza... Tudo espera... Tudo desejo...
Pronto.
Chegamos ao mundo, aparentemente vazios em busca de preenchimento. Aí
ganhamos um nome: eis o maior dos enganos de nossa cultura.
Independente do que somos, independente do que nos tornaremos
carregamos o símbolo do desejo alheio como sinônimo de nós mesmos.
E quando tal marca não se encaixa, pelo contrário, eclipsa a
essência do que faz você ser singular. Dogmas, cânones, leis e
normas são uma torrente a nos levar ninguém sabe para onde; quando
no meio da enxurrada olhamos fixamente para o espelho descobrimos que
estamos travestidos desdo nome até a crença em algo que não somos.
Não
consegui ignorar o caso de Gisberta. Travesti brasileira assassinada brutalmente em Portugal. Depois de brilhar em casas de espetáculos e
deitar-se com os homens mais importantes, encontrou-se soro positiva,
viciada em drogas pesadas e morando em um porão abandonado. Se não
bastasse tornar-se essa piada de mal gosto da sociedade, um grupo de
“crianças” entre 13 e 16 anos a raptaram, torturaram,
sodomizaram e assassinaram... A tola intolerância humana chegou ao
limite mais uma vez, a singularidade foi atacada de frente. O
compositor português Pedro Abrunhosa traduziu o fato em uma
brilhante música, encarnada na voz de Maria Bethânia emociona todos
aqueles que não se conformam com injustiças.
Balada
de Gisberta
Pedro
Abrunhosa
Perdi-me
do nome,
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p'ró nada.
Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.
Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.
Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.
Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.
E o amor é tão longe,
O amor é tão longe… (…)
E a dor é tão perto.
Hoje podes chamar-me de tua,
Dancei em palácios,
Hoje danço na rua.
Vesti-me de sonhos,
Hoje visto as bermas da estrada,
De que serve voltar
Quando se volta p'ró nada.
Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.
Sambei na avenida,
No escuro fui porta-estandarte,
Apagaram-se as luzes,
É o futuro que parte.
Escrevi o desejo,
Corações que já esqueci,
Com sedas matei
E com ferros morri.
Eu não sei se um Anjo me chama,
Eu não sei dos mil homens na cama
E o céu não pode esperar.
Eu não sei se a noite me leva,
Eu não ouço o meu grito na treva,
E o fim vem-me buscar.
Trouxe pouco,
Levo menos,
E a distância até ao fundo é tão pequena,
No fundo, é tão pequena,
A queda.
E o amor é tão longe,
O amor é tão longe… (…)
E a dor é tão perto.
Perdida
do próprio nome, dançando na rua, Gisberta que já tivera sonhos,
tornou-se própria margem da estrada, carregou no corpo e na alma as
marcas da maldade humana. A noite, os gritos, a crueldade e um fim
trágico despacharam-na para o outro lado do mistério. Deste lado, o
mistério somos nós mesmos, incapazes de encarar a própria imagem,
quando uma nesga desta verdade nos atinge sem lentes ou coberturas,
estupefatos reagimos animalescamente. O que chamamos de diferente é
um grito de realidade íntima posto para fora. Sim, ela não nasceu
mulher, porém é mulher... Quantas de nossas verdades são obrigadas
a ficar submersas, quase afogadas no implacável oceano social? Quem
não tem seus pulmões encharcados de tais líquidos tóxicos? Na
verdade todos estamos travestidos para seguir a correnteza, a
diferença é que Gisberta estava travestida de sua essência. E nós,
torpes mentirosos, nos incomodamos com a visão do que deveria estar
naufragado dentro dela... Do naufragado dentro de nós...
O
grande desafio não é castigar as “crianças” que cometeram
violência, bullying ou qualquer nome da moda para
intolerância humana, elas são apenas os membros de uma besta social
alimentada por todos. As “crianças” menos inocentes que você,
simplesmente, não se travestiram de civilizadas como nós, puseram
em prática o que a sociedade as ensinou em teoria. Castigá-las,
reeducá-las: ótimo. Mas quando esta “bela” justiça chegará
até nós também? Quando estaremos realmente livres de nossas culpas
rumando para algo realmente novo? Hoje me sinto arremessado no poço
junto com Gisberta, daqui de baixo no meio da água fétida parece
que se está mais seguro do que aí entre os seres humanos que se
“amam”.