domingo, 16 de outubro de 2011

Mito da tríade

Conta a história que três criaturas nasceram na mesma hora. De origens completamente distintas, encontraram-se e tornaram-se surpreendentemente partes uns dos outros... Mesmo estando separados, um diz dos outros... É como se o Amor tivesse usado uma flecha trifurcada acertando-os onde mais desejavam.
Adidnac nasceu de encontro interessante entre Eros, já adulto, e uma ninfa presa em trepadeiras, a bela voz a pedir socorro e o corpo cingido pelo vegetal atraíram o jovem deus ao cárcere que tornar-se-ia ninho de amor. Depois de consumado o ato, envergonhado, o alado deus resolveu ir embora deixando a ninfa por se desembaraçar sozinha. Adidnac cresceu forte e curiosa... A tudo e a todos interrogava em busca de respostas para sua compreensão de mundo. Um determinado dia, estava por andar em uma cidade quando ouviu sons de uma briga terrível entre recém-casados. Parada em frente a casa, ela e uma multidão assistiam espantados a tamanha demonstração de agressividade e falta de amor.
- Que houve? - perguntou Adidnac a um dos espectadores estranhamente interessada na cena, foi de pronto respondida.
- Eles eram o casal mais feliz da cidade antes do matrimônio, dizem até que foi o próprio Eros que usou suas flechas para uni-los, no entanto após o casamento se descobriram muito diferentes, não conseguindo o amor mantê-los em sua divina condição.
Ao ouvir o nome de seu distante pai, um arrepio cortou-lhe o corpo e seus olhos brilharam cheios de lágrimas, instintivamente rasgou um pedaço de sua túnica e desfazendo-o em fios enlaçou os até então inimigos. Os laços que eram de mera fazenda tornaram-se dourados e depois espiritualizaram-se... Os olhares dos adversários mudaram; viram-se, então, no que mais lhes agradavam um no outro, as amarras reatadas trouxeram de volta a paixão perdida no meio de um caminho que deveria ser de valorização do amor e não de deterioração do mais sublime dos sentimentos. Aclamada por todos na cidade, saiu de lá como a guardiã dos laços que prendem as pessoas, onde havia uniões seus fios estavam lá. Contudo, com o caminhar de suas atribuições, veio a necessidade de quebrar certos laços forjados prejudiciais às partes, quando ela passou a usar, também, a tesoura e desfazer uniões insalubres.
Nosdliw tinha uma peculiar origem. O Tempo em constante fuga se sentiu simplesmente só, às portas do mundo inferior viu sua irmã Medusa distante e só... Foi em direção à mais sozinha das criaturas da Terra, agarrou-a pelas serpentes e mantendo-a de costas possuiu a criatura impiedosamente, deixando-a para trás atordoada. Meses depois, uma das filhas do Tempo foi chamada às portas do inferno. E espantada, viu uma criança abandonada no altar de pedra... Reconhecendo no menino o próprio sangue decidiu criá-lo longe daquela criatura incapaz de amar...
Vigoroso, rápido e inconstante Nosdliw cresceu em tempo incomum para os outros seres. Levava consigo um calor constante e, ao contrário da mãe, transformava as pessoas em versões mais dinâmicas de si mesmas. Tornara-se um agente das transformações tanto de coisas como de pessoas. Em seus olhos de serpentes percebia-se o legado de sua mãe e no eterno mudar, o de seu pai. Em uma de suas caminhadas encontrara uma mulher amargurada pela ausência de seu amor, solícito desposou-a libertando-a do cárcere de suas convicções... Ela deixaria o enlace transformada interiormente decidida a amar a delicadeza, não a força e lutar dispensando protetores; na verdade todas as mulheres ali, naquela aldeia abandonada pelos homens, foram tocadas pela mudança. Montaram em seus cavalos pegaram de suas armas, saíram livres.
Oluas nascera de um incomum impasse. Apolo recebera um presente de Baco: uma taça repleta do mais puro vinho; ao dirigir seu magnífico carro sobre os céus o deus brilhante fitou despretensiosamente a superfície do Rio Acheloos, que revelava um azul sem igual, distraído bebeu o conteúdo de seu presente, quando de pronto descobriu um engodo: o líquido licoroso era o extrato reprodutor do deus dos prazeres, cuspindo o entorpecente e seguindo revoltado sua viagem. Os fluidos dos dois deuses precipitaram-se sobre o belíssimo azul... Nas margens, uma criança já nascida adulta teria nos pastores e ninfas seus tutores e em um de seus pais, o Rio, os conselhos mais sábios.
Taciturno, calmo e criativo Oluas deu início a uma caminhada por terras conhecidas e desconhecidas em busca de sabedoria e prazer... Ao chegar numa pequena cidade encontrara um rei despótico e uma população subjugada psicologicamente e politicamente. Sentou no meio da praça passando a interrogar as pessoas naquilo que mais temiam, desta forma saiam do encontro diferentes, revelados de si mesmas... Não há governo totalitário que se sustente diante da sabedoria de seus súditos. O rei decidiu ir ter com a ameaça.
- Quem é você para desestabilizar minha cidade? Quem lhe deu o direito?!
- Ora, Vossa Majestade, o direito não é dado, ele sempre esteve lá, só precisa ser revelado para que os homens lancem mão do que é naturalmente seu.
- Então você admite que quer tomar o meu trono? Vai morrer por tamanha insolência!
- Não, Majestade, o trono é seu, porém o povo escolhe a quem servir, que não será a mim ou a qualquer outro, olhe para trás.
Espantado, o rei vê seu legado desmoronar no abandono de suas tropas e de seu povo, todos deram-lhe as costas, saíam da cidade. Vertendo lágrimas de ódio e autopiedade o monarca dirigiu-se ao homem sentado no meio da praça... Foi surpreendido por uma voz dentro de si.
“Estás enganado, este não é o fim de teu reino, vejo para tua descendência um futuro brilhante, comece a reconstruir tua cidade e tua subjetividade, assim, teus súditos e outros mais virão, onde pisas tornar-se-á uma das maiores cidades já vistas”.
Oluas deixou o lugar como de costume lentamente. Sempre procurando um pouso para tornar-se um lago, fonte de conhecimento para os viajantes.
Num dia de festival, uma companhia teatral decidiu encenar o dia dos três, todos queriam prestigiar a nova peça. Lotado, o teatro fervilhava; entre os populares estavam eles, esperando se compreender melhor no palco. Apolo havia mandado em especial uma de suas belas musas para este evento tão importante.
Durante a peça, uma espectadora levanta-se gritando de ódio e como que num passe de mágica, agarra a musa pelos cabelos revelando-a para o público que ficou aturdido. - Pensas que esqueci a vergonha que me fizeste passar? Hermes é meu! Rasgarei tua garganta e ventre, morrerão marrafona e sua cria! Serás lembrada em toda Terra por teu infortúnio! E por tua traição! - espantada a musa tenta se desvencilhar, mas não consegue. - Surpresa, querida? A manopla que uso e este punhal são presentes de Éris... posso prender-te e matar qualquer deus que intervir.
A infâmia do evento fez com que os três levantassem e fossem em direção ao palco.
- Eu sei quem vocês são. Não se metam ou sofrerão as consequências do ciúme feminino. Abrindo, assim, em hemisférios o ventre da musa.
Entreolharam-se mudamente. Os três se viram no futuro, no passado, até em outras vidas. Mudamente se amaram... Misturavam-se em seus pensamentos e sentimentos, nunca se viram, porém, sempre se aguardaram. Sincronizados agiram: Nosdliw agarrou a mão empunhadora da adaga tornando-a uma versão infantil do membro e a adaga retornando a condição de metal bruto; Adidnac rapidamente cortou a relação da infanticida com a deusa Éris, impedindo-a de pedir ajuda enquanto Oluas a fez revelar para si mesma a razão para tudo isso, não era só o ciúme, mas uma intensa insatisfação consigo mesma. Depois de dominada, a mulher foi condenada a conhecer sua própria condição, a estar de laços cortados com a realidade e a ter os membros superiores reduzidos a infantis.
A musa suspirava em direção ao Mundo Inferior, de suas entranhas emergia uma bela criança que já atingia a puberdade, de cabelos vermelhos e beleza sem igual. Anailuj tornou-se tutelada da tríade que a partir de então nunca se separaria por completo.
Anailuj desenvolveu-se bela, articulada e inteligente. Organizava eventos divinos ou mundanos, era capaz de tornar bela ou feia qualquer ideia ou criatura. Assim estavam completos em suas essências, os três que fizeram-se em quatro.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O mito da amizade

Conta a história que as margens do Mar Egeu existia largo grupo de semideuses e seres místicos reunidos para trocar ensinamentos com os mais novos. Recém-chegados estavam a bela ninfa Ael, uma filha das fúrias Anaya e o filho do Rio Acheloos Oluas. Os três logo travaram fina amizade, apesar de suas diferenças de origens e objetivos. Ael vinha da Arcádia, mas não se sentia segura lá, desejava ser mais que uma ninfa a corres e esperar a próxima investida de qualquer dos voluptuosos deuses do Olimpo. Anaya trazia a tradição de sua linhagem de sangue forte quente e venenoso, caçadora do traidor Tempo, porém desejava se afastar da perseguição imposta por sua linhagem, queria ser estranhamente uma fúria independente. E Oluas estava muito mais intrigado com a reunião de tanta gente, desejava um dia se tornar um lago sereno para aplacar a sede dos viajantes em busca de conhecimento. Completamente diferentes os jovens deram-se as mãos e dividiram alguns medos e algumas esperanças.

O filho do Rio era muito perdido em seus pensamentos que se pretendiam grandes, no entanto terminavam pequenos e mortais como quaisquer outros. Já as outras duas estavam extremamente atentas uma para a outra, enquanto a ninfa oferecia liberdade a fúria; esta a devolvia solidez. Assim acontece quando estamos aptos a deixar que os outros entrem em nossas vidas: como planta rara sua amizade cresceu em solos tão diversos, mas corações extremamente atentos para um respeito incomum...

Como sempre o Tempo aparece, mesmo que apenas sua sombra para modificar tudo, devorar com sua fome aquilo que quase deuses ou quase mortais tanto prezam: o amor. Anaya sonhou com seu inimigo cortando-lhe o ventre com sua foice impiedosa... Nos dias que seguiam sua fúria só fez aumentar, sua ira recaía sobre todo aquele que ousasse falar sobre o Tempo ou tentar escondê-lo, mas ela deveria saber que tal sombra não abandona nenhum dos seres da Terra. A pobre Ael usava de sua alegria arcádica para tentar tirá-la dessa situação, porém ela também tinha seus problemas. Na outra margem do Mar Egeu estava o filho de cérbero, trazia com ele os dissabores do inferno marcados em seu corpo... Impressionada Ael entregou-se vacilante a tal amante... As marcas do inferno são contagiosas...

Contagiada pelo fogo e, de certa forma, ausente a ninfa perdia-se em seus voos entre as portas do inferno e a bela Arcádia. Anaya se sentiu cada vez mais só e o tempo cada vez mais próximo em seus pesadelos. A todo momento procurava por ele nas sombras, nos olhos dos outros, nos sons das palavras, … Tudo poderia ser Ele... e todos pareciam estar a favor Dele. Oluas assistia a tudo espantado, achava que a planta rara nascida resistiria aos vendavais das diferenças entre as amigas. Ledo engano...

Ael tenta deixar as portas do inferno organizando a clareira de aprendizado do Mar Egeu e é mal interpretada por Anaya. As chagas causadas pelo abandono de uma a outra já doíam e tornavam vinagre o vinho da amizade, separadas achavam que iriam seguir...

Até que chegou a notícia de que o Tempo estaria por perto do Mar Egeu e a bela fúria tentaria buscá-lo para curar sua angústia de viver, porém preocupada a doce ninfa pediu ao filho do rio para avisar a Anaya que aquela informação era um simples boato... Era isso! As duas ainda se gostavam, a rara planta nascida no solo de seus corações resistira então.

Saindo de sua posição estática Oluas decidiu escrever nas nuvens do céu para que todos lessem as desventuras de tão bela amizade, para que elas se sensibilizassem e tornassem a dar ao mundo o que ele mais precisa: tolerância e amor.